quarta-feira, 7 de novembro de 2012

O LENÇO PRETO

As mãos de Dona Clarice já no cosiam como outrora. Trêmulas e inseguras brigavam entre si para trançar as linhas que teimavam em ficar fora da agulha. Os médicos lhe disseram que não havia mais volta; e que, se ela quisesse usar aquele lenço como ansiava, teria de pedir ajuda. Mesmo em idade já avançada podia cuidar de seu novo marido que se encontrava enfermo. Mas isso não a preocupava, pois tinha uma vasta experiência quando o assunto era ser enfermeira. Não que seria essa a sua profissão. Na verdade, nunca trabalhou. Vivia cosendo. Sua rotina desde o primeiro marido era ficar sentada numa cadeira de balanço ao lado da cama passando as linhas coloridas nos lenços que nunca deixaram de ser pretos. Nenhum deles ousou sequer a fugir dos seus cuidados. E esse era um assunto discutido até na igreja. Rezavam todos os fiéis para que ela não terminasse de coser. O padre, o delegado, o médico, o padeiro. Ninguém queria outro velório. Diziam até que as linhas tinham medo do ponto final entendendo a função que elas exerciam quando o lenço ficasse pronto. Era a revolta das linhas. Também o lenço se fechava para que as suas mãos vacilassem entre uma volta e outra, assim não havia fim e nem morte. - Minha Dona Clarice, lhe dei tudo o que sempre quis, e, agora que estou nesta cama, ainda quer a minha morte? – Chorava o seu marido doente deitado na cama. - Não espero a sua morte, meu amado Arnaldo. Quero apenas terminar o meu lenço. Dona Clarice costumava sentar-se ao lado da cama com o lenço na mão enquanto cuidava do seu marido. Ora limpava as lágrimas que teimavam em escorrer pela face já enrugada de Arnaldo; não se sabia se eram súplicas da sua alma ou agonia de ver o fim daquele ponto. - Poderia trazer um pouco de água para o seu velho? – perguntou Arnaldo. Ele esperava que um dia Dona Clarice pudesse esquecer o lenço sobre a cadeira, e assim ele poderia desfazer aquilo que os olhos dela já não viam tão bem. Até seus olhos ficaram mais fracos e a sua memória lhe escapava esporadicamente. Todos se revoltaram contra ela. Mas Dona Clarice era esperta. Outros falecidos tentaram enganá-la, entretanto, ao contrário do que se esperava, ela conseguia refazer o que havia cosido com mais agilidade como se a sentença tivesse data certa. Certo mesmo era a morte dos seus maridos. Suas mãos não são mais as mesmas; sua visão era embaçada; seus ouvidos, obstruídos; sua pele, franzida. E ninguém sabia como ela ainda conseguia um novo marido. Do mais novo ao mais velho. Todos batiam à sua porta. - Seja bem-vindo. O que deseja, meu senhor? – Foi a primeira coisa que Dona Clarice perguntou ao seu atual marido quando ele resolveu conhecê-la. - Desejo a senhora. Quero fazer parte da sua vida. Quero me casar. Ela não hesitava em abrir não só a porta da sua casa como também de seu coração para os novos pretendentes. Não os escolhia, apenas esperava. Todos eram iguais: carinhosos, atenciosos e demonstravam amá-la fielmente. Nem mesmo as mulheres mais belas da cidade eram tão amadas como a Dona Clarice. Enquanto isso Arnaldo estertorava na cama. A sua doença não o preocupava mais. Queria mesmo que ela viesse mais forte para livrá-lo das mãos da sua esposa que se ocupava tentando coser. Acreditava que, se ele morresse antes de ela terminar de coser o lenço preto, nenhum outro homem por causa dela, ou melhor, por causa do lenço. - Clarice! – gritou Arnaldo. - O que passa contigo? - Temo que a minha hora chegou. Não consigo mais respirar direito e o meu peito dói. - Não sofra, meu amor, fique comigo. O que seria da minha vida sem o marido mais romântico que já tive? Dona Clarice sabia tratar os seus maridos. Apesar de passar grande parte do seu dia dedicando-se ao lenço, ela sabia amá-los. Suas palavras eram doces e a sua voz deslizava pelos seus lábios como uma suave melodia. Seus maridos dormiam e acordavam no dia seguinte. Ninguém morria. De tão atenciosa que era, demorava ir para cama permanecendo sentada ao lado deles até o último suspiro antes do descanso noturno. No dia seguinte, Arnaldo tentava acordar primeiro para roubar o lenço de Dona Clarice, mas ela era esperta. Ao abrir os olhos, Arnaldo já tinha o café na cama. Ela o amava tanto que deixava tudo pronto. Novamente estava terminando o seu lenço. O ponto final que daria vida ao lenço de Dona Clarice parecia ter voz própria e gritava para a população. As badaladas do sino da igreja ecoavam pelos campos abertos convidando até o mais longínquo habitante para o velório que estava por vir. Todos se vestiam de preto e já preparavam a missa. Choravam a morte de mais uma vítima da velha senhora da casa de janelas azuis. O céu já não estava mais azul e o sol era tampado pelas nuvens carregadas que chorariam também. E deitado na cama, o senhor Arnaldo via a sua hora chegar. Era um movimento uniforme entre o lenço preto e a natureza. Não tinha mais volta, Dona Clarice terminara de coser mais um lenço. - E o lenço, minha amada Clarice? - Já está pronto. Dona Clarice estava em seu quarto escolhendo o vestido que usaria durante o enterro. Enquanto isso, o senhor Arnaldo teimava em se manter vivo para quebrar aquela lenda. Respirava com dificuldade temendo que a sua alma saísse com um breve suspiro. - Descanse meu marido. – Dona Clarice sentou-se ao lado de Arnaldo com lágrimas escorrendo pelo seu rosto. - Eu não quero descansar agora. Sei que mais tarde terei o meu descanso eterno, mas quero ficar ao seu lado. - Todos querem ficar ao meu lado. Já me acostumei com a idéia da perda e a solidão que persiste em ficar ao meu lado. Não nasci para ter um homem comigo. - Quero viver! – Suplicava Arnaldo. - Viverá. Está vivendo. - Até quando? Aquela pergunta atingiu o coração de Dona Clarice. Ela não queria ficar sozinha novamente e se estremeceu pela primeira vez. Nunca passou pela sua cabeça que poderia desfazer o seu lenço e quebrar aquilo que todos chamavam de maldição. Não tinha nada de bruxa e nem fazia nenhuma maldade para que os seus maridos viessem a falecer após se casarem com ela. A grande viúva estava triste. Ninguém na cidade nunca entendera a tristeza que Dona Clarice carregava em seus olhos diante deste seu novo marido cujo velório já estava pronto. Vestiam preto e estavam na igreja orando pela alma que não tardará a subir. - A igreja já está pronta, Dona Clarice. – Disse o padre. Quando o Padre Francisco entrou na casa dela, sentiu que havia algo diferente. Pensou que ela queimaria o lenço ou até mesmo que receberia a notícia que o seu marido havia melhorado. - O senhor quer subir para que o meu amado marido possa se confessar? Ele já está pronto. Para a surpresa do padre, quando ele adentrou no quarto, Arnaldo estava de olhos fechados com o lenço preto em suas mãos. O coitado não teve nem tempo de confessar. Mais um que morrera antes da entrada do padre ao quarto.

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